sexta-feira, 29 de maio de 2009

Não Fosse Tanto e Era Quase*

“Hoje nem amanheceu aqui”, costumava dizer, por causa do céu costumeiramente cinza de lá. Uma tragédia para quem cujo corpo e alma são solares: solares de uma doçura/venenosa/de tão funda**. É assim sempre, desde então, que me lembro disto quando o céu costumeiramente cinza daqui se faz nos dias de não-amanhecer.
Há muitos dias que não amanhece aqui. Os dias de não-amanhecer faz lembrar os não-esquecer de saudade que ainda persistem como leves agulhadas no tempo do coração. Embora prefira a noite, sinto falta dos dias de sol: nos dias de sol a saudade sobrevoa o peito quase como uma fumaça pálida, daquelas de finalzinho das baforadas de cigarro. Mas ainda é tabaco.



Cinza, vento. - Vai, te dispersa com o ar. Vai, vai com o teu vento quente que é brisa. O meu vento é minuano, gelado. Ele desfaz carinhosamente voraz a minha cabeleira clara. Ele enche de saudade o meu peito gelidamente cálido, mas essa saudade não me esporeia. A tua saudade, sim: a saudade de tu, matéria feita de brisa solar, começou em mim num dia que não amanheceu. No dia que te conheci não amanheceu. Lá fora, não amanheceu.
Hoje teu dia lá fora amanhece sempre. Voltaste para o sol.

- Voltaste para o sol? Aqui está sempre cinza. Acho que trouxe comigo a alma cinza daquela tua morada de antes, aquela dos dias que não amanhecem.




*Hoje consegui descobrir, finalmente, o único produto que, mesmo sendo genuinamente curitibano, é bom: Paulo Leminski. É parte do título de um livro dele o título desta minha récita.
**De Ana Cristina Cesar, “O homem público nº 1 (antologia)”. Também dela, estes:
Do you believe in love...?/Então tá/Não insisto mais.



(MeggieLetras - que me doem como uma catástrofe)

domingo, 24 de maio de 2009

Ana C.

Para os dias quando o coração e a cabeça estão cheios, mas você está estéril de palavras.
Faça suas as de outra. A também isso se destina a poesia.



Samba-canção

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma boa estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas fiz, tantas fiz...

Ana Cristina Cesar.



(MeggieLetras)